23 Mai 2022
Foram obrigadas a se submeter a uma cirurgia, mesmo em idade jovem, para encontrar trabalho e serem mais produtivas.
A reportagem é publicada por Repubblica, 19-05-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Na Índia, no distrito de Beed, principal área de produção de cana-de-açúcar, 36 por cento das trabalhadoras agrícolas não têm mais útero depois de terem sido submetidas a ablação total, muitas vezes em jovem idade, para encontrar emprego e serem mais produtivas. A provação das indianas empregadas nos canaviais é documentada em uma reportagem da emissora France Tèlèvisions veiculada no programa Envoyé spécial.
Todos os anos, durante seis meses, na cidade de Beed, no Maharashtra (centro-oeste), ocorre a safra da cana-de-açúcar, uma atividade que emprega mais de um milhão de trabalhadores, metade dos quais são mulheres. Geralmente são recrutadas por mukadam, ou seja, agentes pagos pelos proprietários das plantações para trazer famílias inteiras para trabalhar nos campos, já a partir dos 10 anos de idade. As condições de trabalho são extremamente duras: acordar às 3 da madrugada, mais de 10 horas de trabalho sob o sol escaldante e apenas um dia de descanso por mês. Durante os seis meses de safra eles vivem em barracas montadas pelos donos das usinas de açúcar, sem água encanada nem eletricidade. Nos campos são sempre os famigerados mukadam que controlam os trabalhadores agrícolas e sua produtividade.
São sempre eles que sugerem às garotas e às mulheres que procedam à histerectomia total, com ablação dos ovários, para eliminar as dores menstruais, problemas ligados ao parto, apresentando a operação como banal. Os médicos da região que realizam a operação invasiva argumentam que, ao fazê-lo, evitam desenvolver tumores, na verdade um risco muito inferior para a saúde da mulher do que as consequências de uma histerectomia, principalmente se realizada em jovem idade. "Se elas não removerem o útero, é um problema para nós, são menos produtivas. E se tiverem um câncer, não servem mais para nada", explicou ao Envoyé spécial um recrutador, Jyotiram Andhale, especificando que o custo da cirurgia é por conta delas e que durante a internação e a convalescença não são pagas. "O mukadam grita conosco se não trabalhamos o suficiente. Ele nos bate muito forte, mesmo quando estamos doentes. Grita com nossos maridos que não trabalhamos o bastante e que teremos que devolver o salário", uma mulher contou aos repórteres da France Télévisions enquanto seu marido está ocupado em entregar as canas recém-cortadas na fábrica.
A reportagem com o título As sacrificadas do açúcar recolheu os testemunhos de trabalhadoras, das quais mais de uma em cada três foi submetida ao procedimento irreversível, algumas apenas com 20 anos. A histerectomia provoca uma menopausa muito precoce, pois bloqueia a produção de hormônios e as torna estéreis. Aos 30, aquelas que se submeteram à cirurgia parecem ter 50 anos, com rosto e corpo prematuramente envelhecidos, mas por outro lado sem mais dores menstruais, sem filhos e, sobretudo, com maior produtividade e emprego garantido. Muitas vezes elas não têm escolha a não ser ceder às pressões dos mukadams para trabalhar e conseguir juntar um salário para sobreviver com sua família pagando o preço mais alto em seus próprios corpos. No resto da Índia, como em outras partes do mundo, esse procedimento é usado por apenas 3% das mulheres e, em geral, é realizado apenas em pacientes com mais de 50 anos.
Além do prejuízo, uma zombaria: junto com o Brasil, a Índia é o maior produtor mundial de açúcar, mas também é um dos países com o menor consumo per capita, de modo que a demanda interna é muito inferior à oferta. Se todo o açúcar excedente fosse vendido no mercado indiano, os preços afundariam com graves danos a toda a cadeia de produção. Assim, o governo paga enormes subsídios para exportar milhões de toneladas. Para remediar o excesso crônico de açúcar – foram produzidas 28 milhões de toneladas em 2019, com excesso de cerca de 5 milhões – o lobby de produtores privados e estatais reunidos na Associação Indiana de Usinas de Açúcar está tentando convencer os indianos a comerem mais açúcar, com campanhas na web e diversos incentivos. A populosa Índia é a maior consumidora de açúcar do mundo, mas em média cada cidadão consome 19 quilos por ano em comparação com 23 de muitos outros países. Os poderosos produtores estão exaltando as propriedades do açúcar e impulsionam a "descobrir a doçura em nossas vidas", apesar do amargo destino das mulheres sacrificadas nos campos do Maharashtra.